14 de abr. de 2011

A VIAGEM QUE PEDRO FEZ AO UMBIGO

Quem diria que a aula de Português, da qual Pedro tanto gostava, seria aquela lenga-lenga da diretora sobre o novo uniforme? A turma toda bocejava enquanto a D. Elvira explicava-lhes o porquê de usarem azul marinho na camiseta, e azul turquesa na calça. O tênis dos garotos devia ser branco e a sapatilha das meninas devia ser cor-de-rosa. Mas quem disse que estavam ligando pra isso? Estavam mesmo com vontade de vê-la sair logo dali, estavam com vontade de continuar a ótima aula de português que estavam tendo, até sua chegada.

Pedro sabia onde tudo ia acabar. Primeiro ela começava a falar a que viera depois falaria da bagunça que estava se tornando a hora do recreio e por fim, não só a sua, mas todas as outras turmas do Santa Isabel estariam lá no pátio, sob o sol ardente das dez e vinte da manhã, com gotas de suor escorrendo pelos rostos e a mão suando por sobre o peito. O juramento a bandeira acontecia sempre que ela desejava. A única que a pediria para ter pena dos alunos era a cúmplice dos pequenos. A velha merendeira D. Laura, que sempre os xingava nas horas da entrega da merenda, também qualquer um xingava, o empurra-empurra era grande e o Robinho até já sangrara o nariz nessa história. Tirando a merendeira, ninguém mais, nem os professores, todos estavam do lado dela. Até mesmo a fada que falava com as mãos. Isso era inaceitável.

- E eu sei que vocês adoram o intervalo e a merenda, mas não precisam correr como desesperados, há comida o suficiente para todos. Quantas vezes terei que repetir, não só para vocês mas para seus pais também, que aqui é uma escola, aqui deve reinar a ordem, a disciplina...

Pedro não a ouvira por completo, quando ela chegara na “...plina... e ... é... por...is...so ”, sua cabeça já caíra sobre o braço da carteira. Começou a caminhar, nem ele mesmo sabia como podia fazer aquilo. Os olhos arregalados. Não era de medo, era um “arregalamento” de incredulidade, de surpresa, de susto. Ele começou a caminhar por uma colina, embora duvido muito que naquele momento ele pensasse que fosse colina. E caminhou, como se tivesse destino certo. Subiu a pequena montanha e quando chegou ao topo, lá de cima ele pôde ter a certeza de onde se encontrava. Não havia sinal de diretora, nem de colegas, muito menos do anjo que falava com as mãos. Olhou para o chão e então algo o chamou a atenção:

“Nossa mãe, eu não acredito!”

E não acreditou mesmo. Fora necessário ele agachar e sentar na borda do grande buraco. Uma cacimba bem redonda. Um orifício que caberia dezenas e dezenas de Pedros lá dentro. Um buraco tão esquisito e ao mesmo tempo tão familiar, que Pedro deslizou sem medo nenhum para dentro dele. Do lado de dentro, percebeu que não era tão fundo como parecia ser, visto do lado de fora. Vendo assim de dentro, ele sentiu uma espécie de aconchego, embora o ar que penetrava em suas narinas não fosse tão agradável. Tinha cheiro de chiclete duro, e um leve sabor amarelo de cera de ouvido. Ele caminhou pelo buraco que parecia se alargar a medida que dava novos passos. E a medida que dava esses novos passos seus olhos se arregalavam novamente, desta vez não para ao redor, e sim para o chão. Ele não se movia como nas areias movediças, não tinha diamantes como as minas, nem tampouco tinha enormes pés de feijões crescendo de seu subsolo. Nada disso. Seus olhos se arregalavam ao ver que nascia do solo as lembranças das coisas que havia perdido em seus cinco ou seis anos de idade. Não necessariamente do solo, a metáfora aqui é só para exaltar o valor daquele solo, pois as lembranças nasciam das coisas que realmente estavam ali. De verdade. E ele sabia disso. Sabia que podia tocar a sua antiga chupeta azul, ainda com a fralda amarrada. Sabia, porque o fez que se apertasse o boneco mordido do Mickey ele ainda faria o saudoso “Fiu-Fiu”. Os olhos do garoto de doze anos ficaram úmidos ao ver a antiga foto do pai, amassada, rabiscada, e roída por algum bicho bem no olho de seu Joaquim. O padeiro se fora depois de experimentar um pedaço de pão e Pedro desde então chorara por sua falta. Como também não comeu mais pão desde então. As lágrimas deram lugar a um sorriso. Um sorriso torto, mas conformado. Olhando mais a frente Pedro viu, bem esticado no chão, um pouco amarelado e já com uma consistência dura, o seu chiclete que até ontem mastigava feliz da vida, e quando acabara o doce e ficou apenas a borracha, pôs dentro da lata do açúcar. Ou sua mãe ou Andréia o teria jogado no lixo. Com a foto do pai ainda na mão direita, levou o chiclete usado a boca com a esquerda. A caminhada continuou e parecia que a cacimba só crescia, não dava água líquida, mas dava uma água que molhava as lembranças tão importantes na vida de Pedro.

Encontrou o carrinho que seu pai lhe dera no natal em que ralou o joelho andando de bicicleta. Encontrou também a buzina dessa bicicleta que havia sumido misteriosamente. Em suas mãos já somava-se uma pequena sacola azul com o desenho de um pônei, e ainda na direita, repousava na palma suada a foto desgastada e muito valiosa. Enfim, algo o fez acordar.

A trilha o fez parar. Estava no fim do buraco. Andara em linha reta, não em círculo, nem para baixo e bem em sua frente estava o fim, bem ali no seu nariz, se encontrava a parte que ajudava a deixar a cacimba redonda. Toda suja de cera. Entendeu então de onde vinha tal cheiro. Mas não teve tempo de compreender o que estava fazendo dentro do próprio umbigo. Nem como aquilo era possível. Beliscou-se: “Ai!”. Não. Não era um sonho. Mas mesmo que não fosse, tinha de arranjar um jeito de ir para a escola, o juramento a bandeira já devia ter começado e a diretora com certeza notificaria sua ausência a sua mãe. E se isso acontecesse, como Pedro explicaria a sua mãe que estivera explorando o próprio umbigo?

Estava decidido a ir pra escola. Mesmo que não soubesse por onde começar.

- Então vamos!

A voz soou em sua cabeça e pensou que estivesse ouvindo fantasmas.

- Mais rápido aí atrás.

Aquela voz era inconfundível. Mesmo assim ficou com muitas dúvidas. “Como ela sabia onde eu estava?”. “Como ela podia estar dentro de meu umbigo?”. Os passos caminharam em sua cabeça, e Pedro teve medo de virar para vê-la. O tac-tac-tac do salto o fizeram se apavorar. Então ela apareceu.

A diretora o tomou pela mão e ainda assustado e coçando os olhos ele a seguiu.

autor: Cosme Potter

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