A seguir uma crônica de Mario Prata que também fala desse objeto já um pouco defasado:
O mata-borrão
Vou tentar explicar. Naquele tempo (já dizia Jesus a seus discípulos) não existia a caneta bic, por exemplo. Comecei a me alfabetizar com lápis, apontador e borracha. Já no segundo ano primário usava a caneta de pena e o tinteiro que ficava encravado num buraquinho da carteira (que eu nunca entendi por que se chamava carteira, já que ali nunca colocávamos cartas. Ah, devia ser para escrever cartas, vá lá). Só que a tinta demorava para secar, podia manchar, podia causar um borrão.
E é aí que entrava o mata-borrão. Era um objeto grande. Uns 20 centímetros de largura, por uns 10 de altura. De madeira, já que na época não havia essas modernidades chamadas de matéria plástica ("que coisa drástica, que coisa elástica", cantava o Ari Toledo com letra do Carlinhos Lira). Era ovalado e se mexia como uma cadeira de balanço.
Na parte de baixo ficava o papel borrão, grosso, que sugava a tinta. Você escrevia uma
linha e passava o mata-borrão. Era lúdico, porque a sua linha ficava marcada no papel borrado, de trás para a frente. Quando o papel já estava bastante "sujo", havia uma artimanha para tirar aquela folha, num desatarraxar rápido. E uma nova folha já estava por baixo. Sempre que eu vejo os pilotos de corrida tirando aquela frente do capacete (pedacinho de plástico) quando ficam sujas, me lembro do meu velho mata-borrão. Era pesado o mata-borrão. E ocupava um considerável espaço na pasta (a antecessora da mochila de hoje).
Você pode ter certeza que a Carta de Caminha, para citar apenas um exemplo, foi escrita com um velho e bom lusitano mata-borrão ao lado. Já vi a carta ao vivo. Nenhum borrão, nenhum deslize. Coisa de profissional. Graças, é claro, ao mata-borrão. Foi, com certeza, o primeiro mata-borrão a entrar no Brasil. E não era de pau-brasil.
O objeto em questão não evoluiu. Viveu enquanto foi preciso. Não teve substituto. Tentei agora procurar uma analogia para ele no computador. Não, não é o delete, nem o selecionar. Muito menos o corretivo gramatical. Não existe lugar para ele no computador.
Mas na vida política, bem que poderíamos passar um mata-borrão nas falas de vários dos nossos eleitos. Ou seja, amenizar um pouco as baboseiras, limpar as bobagens que eles falam e fazem. Toda vez que vejo o Maluf ou o Eurico Miranda falando, me dá vontade de passar um mata-borrão daqueles bem pesados na boca deles. E, se possível, na cabeça mesmo. Uma pancada, um limpar idéias borradas.
"Papel não encolado, que serve para absorver tinta ou qualquer outro líquido; papel mata-borrão, papel-chupão, chupão, papel de chupar. O conjunto constituído por esse papel adaptado ao berço." Tá no pai-dos-burros.
Pois só agora descobri que a parte de madeira se chamava berço. Me deu mais saudades dele ainda. Berço!
Agora, quando você ler os escritores brasileiros, os contistas, os cronistas e os poetas de antes dos anos 60, fique certo (ou certa) que aquilo ali que agora está na sua frente (talvez até mesmo na tela do seu computador) um dia, um dia aquilo passou pelo mata-borrão, aquilo saiu do berço de um escritor.
Acho que você vai gostar ainda mais do que estiver lendo.
Mario Prata, O Estado de são Paulo, 02/01/2002
É realmente vc tem razão. Tem muita coisa esquecida que merece ser lembrado e visto por quem desconhece. Parabéns pela idéia.
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